Uma singela homenagem àquele que era considerado (inclusive por mim) o maior escritor americano vivo. Rest in peace, Mr. Norman Mailer, autor de pérolas como "A Luta" (sobre o combate Ali x Foreman), "Os Machões não Dançam", "Os Exércitos da Noite", "A Canção do Carrasco", e o meu preferido, donde a passagem abaixo é retirada, "Os Nus e os Mortos".
“Croft pensou na noite em que os japoneses tentaram atravessar o rio. Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha e contemplou longamente o prisioneiro. Uma emoção poderosa, mas indefinível, fê-lo cerrar os dentes. Desprendeu o cantil e tomou um gole. Notou que o prisioneiro o observava. Num impulso deu-lhe o cantil.
- Vai, bebe – disse Croft, e ficou a olhar a avidez com que o prisioneiro se dessedentava.
- Eu me dane se entender isso – disse Gallagher. – Que foi que deu em você?
Croft não respondeu. Olhava o prisioneiro, que já tinha acabado de beber. Havia lágrimas de alegria no rosto do japonês, e, de repente, ele sorriu e apontou para um dos bolsos de sua túnica. Croft tirou de lá uma carteira e abriu-a. Encontrou uma fotografia do soldado japonês à paisana, tendo ao lado a mulher e duas crianças de carinhas redondas de bonecas. O soldado apontou para si mesmo e depois fez dois gestos com a mão acima do solo para indicar a altura dos meninos.
Gallagher olhou a fotografia e sentiu uma dor cruciante. Por um momento lembrou-se de sua mulher e perguntou a si mesmo como seria seu filho quando nascesse. Tomou um susto ao dar-se conta de que sua mulher talvez estivesse dando à luz neste momento. Por alguma razão, que ele mesmo não entendia, disse de repente ao japonês:
- Meu garoto vai nascer por esses dias.
O prisioneiro sorriu polidamente, e Gallagher, apontando encolerizado para si mesmo, estendeu as mãos separadas uns vinte centímetros uma da outra.
- Meu – disse ele – meu.
- Ahhhhhhh – disse o prisioneiro – Chiisai!
- Sim, tchiz-ai – repetiu Gallagher.
O prisioneiro meneou a cabeça lentamente e tentou sorrir.
Croft aproximou-se dele e deu-lhe outro cigarro. O soldado japonês inclinou a cabeça quase até o chão e aceitou o fósforo.
- Arigato, arigato, domo arigato – disse ele.
Croft sentiu a cabeça palpitar com intenso alvoroço. Havia lágrimas outra vez nos olhos do prisioneiro, e Croft olhou-as com indiferença. Depois passeou a vista pela clareira e viu uma mosca pousada na boca de um dos cadáveres.
O prisioneiro tirou uma longa baforada. Estava agora recostado no tronco da árvore. Seus olhos tinham se fechado, e pela primeira vez havia uma expressão sonhadora em seu rosto. Croft sentiu uma tensão formar-se na garganta, deixando a boca seca, amarga, ávida. Até então estivera com a mente vazia, mas, de súbito, levantou o fuzil e apontou-o pra cabeça do prisioneiro. Gallagher ia protestar, quando o prisioneiro abriu os olhos.
O japonês não teve tempo de mudar a expressão do rosto antes que a bala lhe estourasse o crânio. Tombou para frente e depois rolou de lado. Ainda sorria, mas tinha um ar estúpido agora.
Gallagher tentou novamente dizer alguma coisa, mas não conseguiu. Sentiu um medo terrível e, por um instante, voltou a pensar em sua mulher. Oh meu Deus, salvai Mary, meu Deus, salvai Mary, repetia para si sem pensar na significação das palavras.
Durante quase um minuto Croft fitou o japonês. Sua pulsação tornava-se mais lenta e a tensão na garganta e na boca se atenuava. Compreendeu, num átimo, que uma parte do seu cérebro, a mais escondida, soubera que ele ia matar o prisioneiro desde o momento em que mandara Red embora. Sentia-se totalmente vazio agora. O sorriso estampado no rosto do morto divertia-o, e uma risada galhofeira escapou-lhe da boca aos borbotões.
- Caramba – disse ele. Pensou de novo nos japoneses cruzando o rio e empurrou o cadáver com o pé. – Caramba – repetiu – esse japonês morreu feliz. – O riso engrossava dentro dele.”